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Inteligência multifocal para administradores: mais do mesmo?

Inteligência multifocal para administradores: mais do mesmo?

Quem trabalha, com administração ou treinamento, há algum tempo, com certeza, já viu inúmeras teorias, que foram sucesso mundial, sumirem e hoje ninguém mais tem a menor ideia de que existiram como, por exemplo, a Teoria Z de William Ouchi, que tratava de excelência organizacional. E também já viu equívocos fantásticos de gurus, como Gary Hamel, que no seu livro Liderando a Revolução, cita a Enron como modelo de empresa a ser seguido. E menos de um ano depois, a Enron faliu envolvida num mar de lama.

O fato é que a todo o momento estão sendo lançados livros que se dizem inovadores e a solução definitiva e, quando vai se ver, não acrescentam nada. São apenas modismos e a maneira como são apresentados não passa de uma estratégia de venda da editora. Assim, quando começo a ler alguma coisa prometendo mundos e fundos, tomo minhas precauções. E se for verdade, ótimo. Portanto, para não comprar gato por lebre, resolvi assumir a postura de um comprador profissional. Ou seja, era preciso saber se o brilhante era verdadeiro ou falso. E, em termos práticos, verificar se seria possível agregar valor aos treinamentos que desenvolvo: Excelência de Desempenho, Negociação e Liderança.

Os procedimentos

O que fiz para tirar as minhas conclusões foi, simplesmente, aplicar ao livro, “Inteligência Multifocal”, o método que o autor, Augusto Cury, recomenda para realizar mudanças emocionais, que chama DCD, duvidar, criticar, determinar. Eu apenas fiz uma pequena alteração e criei o método DCC, duvidar, criticar, concluir. Assim, para tirar as minhas conclusões, passei a duvidar e a criticar, ou seja, segui as próprias recomendações do autor. Igualmente, levei em consideração Kurt Lewin - “Não há nada tão prático quanto uma boa teoria”. Isto significa que se a teoria é boa, ela deve levar às melhores práticas e, consequentemente, aos melhores resultados.

A bibliografia

O primeiro ponto que considerei foi a bibliografia. E percebe-se, para começar, que não há nada sobre semântica, sobretudo a gramática transformacional de Noam Chomsky. Afinal, quem quer falar sobre pensamento e inteligência deve entender de linguagem, entre outras coisas, pelo que afirmava Jacques Lacan: “o inconsciente está estruturado como linguagem”. Mas também não encontrei nada sobre coaching, programação neurolinguística, teoria geral dos sistemas, cibernética, dinâmica de grupo, comportamento organizacional, comunicação, criatividade, hipnose, terapias cognitivo comportamentais, entre elas a TCER - Terapia do Comportamento Emotivo Racional de Albert Ellis, bem como sobre crenças e o sistema imunológico.

Em suma, a bibliografia é bastante limitada e parece desconhecer o que já existe sobre o assunto, inclusive, no mundo do treinamento e desenvolvimento de pessoas nas empresas. E, sem a menor sombra de dúvida, é em função deste desconhecimento, que Inteligência Multifocal quer fazer crer que está revolucionando e estimulando a formação do ser humano como pensador e engenheiro de ideias. A bibliografia não leva em consideração, entre outros, livros como:

- Controle Cerebral e Emocional, Narciso Irala - 30ª edição, - 1997

- The Inner Game of Tennis, Timothy Gallwey - 1974

- Usando a sua mente, as coisas que você não sabe que não sabe, Richard Bandler - 1987

- The Book on Mind Management, Dennis Deaton - 1994, ou seja, 4 anos antes da publicação de Inteligência Multifocal.

Entendendo o conceito

Inteligência multifocal é um conceito derivado de inteligências múltiplas de Howard Gardner, mas no livro não existe uma página que especifique concretamente o que quer dizer. Encontram-se fragmentos ou divagações. Assim, fui recorrer ao dicionário e a palavra é evidente por si mesma: significa ter vários focos. Mas estes focos seriam ao mesmo tempo? Isto seria a mesma coisa que dirigir automóvel e mandar torpedo pelo celular. Ou então, corresponde àquilo que Chris Argyris chama de foco caótico e é uma das principais causas do baixo desempenho nas empresas. Neste sentido cabe lembrar Emmet Fox: “Até conseguir colocar sua atenção naquilo que quer, você não pode se considerar um mestre de suas ações. Você nunca será feliz até que seja capaz de determinar no que irá pensar na hora seguinte”.

Às vezes, a impressão que se tem é de que inteligência multifocal não passa de um checklist de competências. Assim por exemplo, trabalhar em equipe, ter espírito empreendedor, colocar-se no lugar do outro, saber ouvir, trabalhar com adversidade, são características da inteligência multifocal. Mas não existe nada sobre o mais difícil, que é como se faz isso. Ou seja, tudo o que se faz normalmente no treinamento e desenvolvimento de pessoas nas empresas, passou a ter o nome de inteligência multifocal. Mas aquilo que quer dizer tudo, acaba não dizendo nada.

Outras considerações

Outro ponto importante é o seguinte: se você tem a melhor teoria, ela deve levar, consequentemente, aos melhores resultados, com qualidade e velocidade. E não é isso o que se verifica nos casos clínicos relatados por Cury. Assim, por exemplo, há o caso de um empresário que ficou com fobia de avião. Quem conhece sobre técnicas de cura rápida da fobia resolve a questão em aproximadamente 30 minutos, e não foi isto o que aconteceu no caso relatado. E se houvesse necessidade de fazer frente a uma situação como a vivida pelo coach americano Anthony Robbins, qual seria o desfecho? Quando Robbins estava começando a sua carreira, foi desafiado pela Life Magazine a mostrar, na frente de seus repórteres, que o seu trabalho de mudança realmente funcionava. Para isto, foi escolhido um jogador de basquete dos Los Angeles Lakers, Byron Scott, que estava tendo um desempenho medíocre. Havia feito somente 3 cestas no último jogo. Quando Robbins começou o processo de mudança, fez um teste inicial e Scott só conseguia fazer 2, eventualmente, 3 cestas em cada 5 tentativas. Depois de concluído o trabalho, veio o teste final e Scott conseguiu 28 cestas em 30 tentativas, ou seja, uma mudança espetacular. E isto demorou apenas 40 minutos e, diga-se de passagem, não foi utilizado nada de inteligência multifocal. Byron Scott veio a se tornar um dos melhores jogadores da NBA.

Conclusão com relação à forma

Para me aprofundar um pouco mais na questão, li outros livros do mesmo autor e constatei que, assim como Inteligência Multifocal, são cheios de generalizações, coisas vagas e difusas, chavões, lugares comuns, obviedades ditas com grande pompa, frases de efeito e, muitas vezes, lembram o livro Caldo de Galinha para a Mente. Além do mais, são extremamente repetitivos. Frequentemente as mesmas histórias e até os mesmo parágrafos são encontrados em mais de um livro.

E existem “pérolas” fantásticas, como a mencionada abaixo:

“É estranho que muitos jovens não saibam com detalhes o que está acontecendo no mundo”.

Entretanto, na página anterior está escrito:

“o cérebro humano não é um depósito de dados. Suas janelas não são ilimitadas, o que indica que a cultura inútil estressa a mente”.

Uma coisa que chama a atenção é a criação de novos rótulos para coisas conhecidas. Assim, por exemplo, a memória de curto prazo passou a se chamar MUC, memória de uso contínuo. As emoções de dor e fragilizadoras passam a ser janelas killer duplo P. E o fato de que todas as experiências de uma pessoa são gravadas na memória passou a se chamar fenômeno RAM, registro automático da memória. E por ai vai. Mas não é pelo fato de alguém chamar tartaruga de urubu que a tartaruga vai começar a voar.

De qualquer maneira, para me certificar das minhas conclusões, fui pesquisar outras fontes, e eis o que diz Renato Zamora Flores, professor do departamento de genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e especialista na análise de imposturas científicas: “Os únicos trechos mais ou menos aproveitáveis da teoria da inteligência multifocal são versões pobres das ideias de cientistas como o neurologista António Damásio. O resto é pseudociência”

Redirecionando o foco

Assim sendo, para um administrador, o conceito de inteligência multifocal não agrega valor e não passa de um rótulo muito bem bolado. Mas descobrir por que Augusto Cury vende tanto livro pode ser de grande valia, inclusive para se identificar como funciona a cabeça do consumidor. Neste sentido, estamos diante de um case de grande sucesso. Mas como o objetivo deste artigo não era tratar da psicologia do consumidor, vou traçar apenas um esboço, em termos de entrada, processamento, produto, deste sistema de sucesso. Entretanto, acho que este tema merece ser objeto de outros artigos, e até de um estudo mais aprofundado, por quem tem interesse na área.

Vamos a alguns pontos:

Entrada: São todos os insumos adotados no processo produtivo, inclusive, onde Cury busca inspiração para escrever seus livros. Assim vejamos: antes de Inteligência Multifocal haviam sido publicados Inteligência Emocional e Inteligências Múltiplas; antes de Nunca Desista dos seus Sonhos, havia sido publicado Você é do Tamanho dos seus Sonhos; antes de Mestre dos Mestres foi publicado Jesus, o maior Psicólogo que já Existiu; antes de Pais Brilhantes, Professores Fascinantes, foi publicado Pai Rico, Pai Pobre.

Ou seja, Cury tem um grande faro para o sucesso e alavanca o seu sucesso em livros que foram best-sellers. E além disto, foi muito competente para criar uma marca forte, que é inteligência multifocal.

Processamento: com relação à produção, não temos elementos para saber se Cury escreve sozinho ou se tem equipe. Pode-se apenas supor. O fato é que ele escreve uma média de 2 livros por ano, faz muitas palestras e ainda atende no consultório. Assim, ou ele faz uma administração espetacular do tempo, ou tem equipe.

Produto: Em todos os seus livros, Cury se apresenta como a autoridade máxima, o cientista, o pesquisador, o psiquiatra que sabe o que se passa nas mentes das pessoas, inclusive, o que se passou na mente de Cristo. Além disto, repete sem parar que descobriu algo novo e revolucionário, a inteligência multifocal. Se você comprar isto, você acaba perdendo a consciência crítica e querendo ser mais um discípulo do mestre. E quem perde a consciência crítica não é capaz de perceber coisas como o que segue, extraído de um de seus livros:

“Ela leu dez vezes este livro”. Como pode estar escrito no próprio livro, entre outras coisas, se o livro ainda estava na primeira edição? Então, estamos diante de um livro que faz uma profecia sobre si mesmo ou do primeiro caso de um livro que se reescreve automaticamente.

Para concluir

Confesso que esperava muito mais do conceito de inteligência multifocal, pois esperava encontrar algo que realmente estimulasse a formação do ser humano como pensador e engenheiro de ideias. O fato é que não se cumpre o que se promete e até chega a parecer que estamos diante da invenção da roda quadrada.

Assim, não resta a menor dúvida de que Augusto Cury é um excelente vendedor, haja visto o sucesso espetacular da sua obra. O problema é que nem todo mundo é comprador profissional.

E mais: um ser humano pode perder tudo, menos a esperança, a paixão por vencer e a consciência crítica.

fonte: administradores.com.br

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